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Mostrando postagens de agosto, 2011

Lembranças de Havana (II)

--> Quando o avião toca o solo é possível observar o asfalto da pista reluzente. Choveu há poucos instantes e a janela do avião se embaça, acumula gotículas trêmulas nos ângulos arredondados. De cima é possível contar duas ou três aeronaves que desembarcam passageiros ou manobram no pátio. Embora seja madrugada, o movimento está longe de se assemelhar ao frenesi aeronáutico das capitais capitalistas. Enquanto a aeronave manobra, nota-se que a orgia de luzes é mais pudica no aeroporto José Martí, pois certamente Havana está sujeita a racionamento.             Uma imprevista multidão acotovelava-se nas esteiras aguardando malas. A aeronave no pátio e as etiquetas na bagagem indicavam ruidosos espanhois em viagem de férias. Mais tarde soube-se que misturaram as malas dos passageiros de dois voos, causando confusão.             “Que tipo de constrangimento aguarda um visitante estrangeiro num país comunista? Haverá inspeção até nos sapatos?”. Não. Entrega-se uma das tarjetas re

A tirania dos telefones celulares

Antigamente, quem embarcava nos ônibus que faziam o transporte de passageiros deparava-se com um aviso mais ou menos assim: “É proibido o uso de aparelhos sonoros no interior desse veículo”. A mensagem mencionava o número da lei e a pena prevista para quem a descumprisse. A frase figurava numa placa de metal fixada em local bem visível nos ônibus. Sabe Deus a origem da iniciativa, mas o fato é que, aos poucos, o aviso foi se tornando menor e, por fim, desapareceu dos ônibus mais novos. Como há coisas que acontecem de forma cíclica na vida, o aviso deveria ser ressuscitado. A emergência dos aparelhos de telefone celular multifuncionais – que inclusive tocam música para desespero dos ouvidos mais sensíveis – exige o resgate de normas de etiqueta e, se necessário, o constrangimento do aviso legal. Os celulares hoje ocupam posição central na vida das pessoas, sobretudo no Brasil, onde caiu no gosto popular. Além de facilitar a comunicação durante deslocamentos ou oferecer a comodidade d

Lembranças de Havana (I)

  Aos poucos o ronco surdo do motor vai se tornando distante e o avião mergulha através de uma diáfana camada de nuvens avermelhadas. Agora é possível perceber as minúsculas gotas d’água que brilham e se desprendem, num rodopio, das asas alvas da aeronave. Lá embaixo apenas se intui o mar do Caribe, escuro e úmido na noite sem lua, de nuvens baixas.             Mais alguns instantes e fiapos de nuvens sanguíneas deixam entrever luzes distantes. Mais um pouco e se vê a faixa clara de areia de uma praia, onde o mar espumeja, furioso; num trecho recortado, as luzes se condensam e surge um aglomerado de casas amplo o suficiente para constituir uma pequena cidade: dessas alturas, obviamente é impossível descobrir o nome do lugar. O coração do viajante bate acelerado: visitar Cuba assume a dimensão de um compromisso marcado com a História. Neste caso, todavia, é a realidade que vai além da metáfora: Cuba, Fidel e o Che representam um capítulo singular na América Latina recente. Essa impor

A busca pelas ovelhas perdidas

      Ao contrário do que muita gente imagina, o número de pessoas que se “convertem” às chamadas igrejas evangélicas desacelerou ao longo da última década no Brasil. Entre 2003 e 2009, por exemplo, algumas denominações religiosas declinaram em quantidade de fieis, apesar de todo o estardalhaço que se faz pelas ruas, nos locais de trabalho e – sobretudo – nas emissoras de rádio e televisão. Os chamados evangélicos – ou “cristãos” na terminologia fundamentalista que alguns adotam para excluir todos os que não “oram” na mesma cartilha – praticamente estagnaram em cerca de 25 milhões de pessoas. Os dados são do IBGE.             O fenômeno mais curioso, além da estagnação relativa, é o caráter “antropofágico” da expansão de algumas organizações: crescem às custas dos rebanhos de outras que, por sua vez, reforçam o aprisco com simpatizantes de uma terceira igreja que vai acabar precisando elevar os louvores ao Senhor se não quiser, ela mesma, ver minguar o sacrossanto dízimo.           

A Feira de Santana é uma cidade mestiça

                           Lá por volta de meados do século XVI, quando os portugueses começaram a se aventurar pelos sertões baianos, dando início aos movimentos que resultaram no povoamento dos vastos territórios de Goiás e do Piauí, a Feira de Santana era uma terra indígena. O motivo era óbvio: aqui pelos arredores viviam tribos que se beneficiavam das incontáveis fontes de recursos hídricos, escassas sertão afora. Pressionados pela implacável lógica mercantilista, os indígenas tiveram que dividir o território com o homem branco que avançava criando gado e plantando cana.             Movido pela sede de riqueza, o branco avançou, consolidou imensos canaviais no entorno da Baía de Todos os Santos e reservou pro gado as terras do chamado Grande Recôncavo, incluindo aí a Feira de Santana e seus olhos d’água. Nessa imersão pelos sertões, deixou atrás de si modestos núcleos de povoamento que deram origem às cidades atuais.             No rastro do avanço econômico do branco, o negro c