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Desigualdade no rural feirense cresce há décadas

Ano passado o Brasil deveria ter realizado o seu Censo Agropecuário. É que o último aconteceu em 2006 e, como a periodicidade costuma ser decenal, todos estimavam que aconteceria em 2016. Três fatores essenciais atrapalharam o cronograma: a crise econômica, o consequente arrocho nas contas públicas e a crise política que resultou no impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT). Ficou para 2017, conforme se noticia, com as tratativas já em andamento.
Dizem que, estranhamente, muitos itens que ajudam a traçar o perfil do Brasil rural foram removidos do questionário, sob a justificativa da redução de custos. São exatamente as informações que mapeiam a pequena agricultura e ajudam a traçar o perfil social do campo brasileiro. É que, para a gente do mandatário de Tietê, Michel Temer, o que conta é o agronegócio.
Caso a manobra se confirme, será um desastre. Afinal, as informações censitárias são fundamentais para se pensar e propor políticas públicas para o campo. Como pensar o rural sem informações consistentes? Dilemas do gênero, pelo visto, não integram as preocupações do emedebismo. Mas deveriam inquietar a sociedade.
No geral, as condições de vida no campo são muito mais difíceis para quem é pobre, inclusive em relação aos pobres que moram nas cidades. Não se trata de novidade. Estão aí bateladas de estatísticas para confirmar, inclusive aqui na Feira de Santana. Algumas informações, coletadas em censos anteriores, são alarmantes.

Desigualdade

Um exemplo: em 2006, sete propriedades – ou 0,08% do total desses estabelecimentos – detinham impressionantes 4,9 mil hectares no município. Essa área representa 8,12% de toda a terra disponível na Feira de Santana. Por outro lado, 5.829 propriedades – ou 65% do total – ficavam com apenas 7,46% das terras existentes. Esses números traduzem a imensa desigualdade no meio rural feirense, ignorada pela maioria da população.
Aplicado ao meio rural, o Índice de Gini reflete essas desigualdades. No rural feirense, o indicador era altíssimo em 2006: 0,851. Quanto mais próximo de um, maior é a concentração de renda; quanto mais baixo, menor. Comparando com o meio urbano, por exemplo, percebe-se a imensa distorção: no conjunto da cidade, o índice era de 0,612 em 2010.
O mais alarmante é que o indicador vem se elevando ao longo das décadas: em 1996, era menor: 0,844; onze anos antes, em 1985, a concentração era ainda mais baixa: 0,822; No levantamento anterior, em 1980, idem: alcançou 0,807; em 1950, período ainda mais remoto, não passava de 0,699; e na década de 1940, menos ainda: 0,682.
Todas as informações integram dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Para esse artigo, foram extraídos do site do Projeto Geografar, da Ufba. É claro que sempre se pode alegar inconsistência nos dados, eventuais mudanças de metodologia e outros aspectos que, sem dúvida, podem produzir distorções nas comparações por períodos longos. Mas é indiscutível que os números exigem uma maior compreensão sobre a realidade rural feirense.

Êxodo

É possível que o êxodo ajude a explicar o fenômeno: muita gente foi deixando o campo ao longo das décadas, em busca de melhores condições de vida na cidade. O pouco que tinham foi sendo vendido para quem ficava – principalmente os fazendeiros e grandes proprietários – o que, aos poucos, foi favorecendo a concentração.
Essa é apenas uma hipótese. Outra, é que as adversas condições climáticas foram tornando mais pobre quem já era pobre, enquanto aqueles mais afortunados foram se adaptando melhor às dificuldades. É algo que também exige estudos para se confirmar, ou não. Quem fica cada vez mais pobre, obviamente tende a migrar.
De qualquer forma, é um retrocesso desprezar a dimensão social no censo agropecuário que se aproxima. É a partir dos dados que ele oferece que se estabelecem parâmetros para a elaboração de políticas públicas. Ajudam a reforçar a voz dos que vivem excluídos, adicionalmente penalizados pela invisibilidade da vida rural.

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