Quem
entra no Centro de Abastecimento ali pela Praça do
Tropeiro às vezes se depara, logo de cara, com a propaganda da “Garrafada do
Sertão”. Um velho megafone comunica as virtudes da medicação milagrosa,
narradas por uma voz rascante. Aquilo é uma amostra do que o visitante ai
conhecer circulando pelos galpões e corredores do maior entreposto de
abastecimento do interior do Nordeste. Mais que um passeio, é uma viagem às
antigas tradições e ao mercadejar essencialmente nordestino.
Os
Boxes de Artesanato
À esquerda de quem
desce pela rua Recife fica o setor de artesanato. Nele, nos boxes simétricos de
concreto, uma infinidade de produtos é exposta aos olhos dos passantes:
arranjos domésticos elaborados com palha trançada, enfeites de barro,
mealheiros de barro de inúmeras formas e tamanhos, sapos esguios de barro
forjados para espantar o mau-olhado, selas, esteiras de vime e um incontável
número de potes de barro nos mais variados tamanhos e formatos e os mais
diversos cestos de cipó trançado.
Ali se constata a
relevância do couro, do barro e do vime como matéria-prima para a produção do artesanato
e como elementos de construção da identidade do sertão, nas cercanias da Feira
de Santana. Sertão que se estende inóspito, para
além do rio Jacuípe, mas que também se inspira na natureza mais amena do
Recôncavo, que se espraia ao sul, com seus canaviais.
Galpão
das Carnes
No galpão de carnes
predomina o ritmo frenético dos machados, facões e longas peixeiras que
destrincham pedaços de boi, porco, carneiro, cabra, aves e peixes, reduzindo-os
às proporções adequadas para exibição nas bancadas ou para atender às
solicitações dos consumidores.
Ossos bojudos repousam,
descarnados, pelos cantos; cães encardidos circulam, à cata de sobras;
açougueiros indiferentes manejam ganchos, afiam lâminas, ofertam seus produtos
à clientela, tomam café com pão nos intervalos da faina ou, simplesmente, jogam
conversa fora quando o movimento declina.
Os cheiros inconfundíveis
dos requeijões, das manteigas de qualidade, dos doces de leite e da goiabada
atraem extensa freguesia. Muitos, após detidos exames sobre o produto,
encomendam fatias que são extraídas com lâminas ágeis. Na sequência, os
embrulhos de papel pardo quadrados, e gordurosos, repousam nas sacolas das
donas-de-casa. Mantas de carne salgada, nas bancas ali perto, também atraem
pelo cheiro intenso.
Nas lanchonetes e
padarias localizadas nos portões de acesso ao galpão tabaréus tomam café com
pão, devoram os lanches exibidos nas vitrines com largos goles de suco e,
quando a manhã avança e o calor irradia-se em labaredas incandescentes, não
falta quem solicite a primeira cerveja e o tira-gosto que costuma ser degustado
com generosas porções de farinha.
Galpão
dos Cereais
Ali funciona,
informalmente, uma espécie de termômetro da agricultura regional: quando as
trovoadas espantam a seca e as sementes germinam, no galpão multiplicam-se as
sacas de feijão e de farinha de mandioca. É quando os consumidores que circulam
pelos corredores estreitos contam com ampla variedade de produtos. Nos períodos
de estiagem – sobretudo quando as secas são mais severas, como agora – as
opções escasseiam e o comprador, contrariado, tem que se contentar com o feijão
menos vistoso e com a farinha menos atrativa ao paladar.
Não é somente o feijão
e a farinha que atraem os consumidores: por ali também repousam sacas de arroz,
milho e, até mesmo, grandes embalagens de macarrão. Também é nesse galpão que
os consumidores encontram ampla variedade de rapaduras, cuja oferta obedece à
mesma lógica climática: fartura e variedade são comuns nos meses que sucedem o
inverno sertanejo.
É amplo o sortimento de
produtos em alguns boxes: biscoitos, margarinas, produtos de higiene e até
sabão em pó estão acessíveis a quem dispensa subir a rua Recife para encontrar
mais opções nas artérias do centro comercial. Como marca inconfundível daqueles
corredores, noutros tempos havia o cheiro quente do café que era torrado ali
mesmo, em antigas máquinas ruidosas.
Quem pretende comer
encontra também boxes especializados em pratos regionais: carneiro ou bode
cozido, mocofato, sarapatel, meninico e buchada encontram-se entre as iguarias
servidas com arroz, farinha ou cuscuz. Largas doses de cerveja gelada ou
aguardente empolgam os frequentadores que conversam aos berros, gesticulando,
convencendo os interlocutores com as mãos.
Galpão
dos Hortifrutigranjeiros
A quantidade de frutas,
verduras e legumes exibida em tabuleiros, carrinhos-de-mão e nas bancadas dos
boxes desse galpão é uma eloquente demonstração das virtudes de um país de
dimensões continentais: ali se encontra de tudo, o que espanta visitantes
estrangeiros acostumados à variedade limitada em seus países de origem.
Cebolas brancas e
roxas, tomates verdes ou de um vermelho apetitoso, vistosos pimentões, repolhos
gigantescos, verdes e roxos, quiabos longilíneos, chuchus bojudos, abóboras
enormes e batatas diversas amontoam-se nos espaços exíguos, à vista dos
transeuntes que trafegam, examinando os balaios com minúcia.
Há também uma
substantiva fartura de opções para o café da manhã: aipim, batata-doce,
fruta-pão, cuscuz e farofa. Os ingredientes para as saladas passam pelas
alfaces tenras, por macias folhas de couve, além de bateladas de cebolinha,
coentro, salsa, além de condimentos diversos, como corante e pimenta-do-reino.
Nos balaios e boxes, os
vendedores molham os produtos, tornando-os mais frescos sob o calor intenso dos
finais de manhã. Redes amarelas reúnem composições diversas – chuchu, batata
inglesa, cenoura e tomate – para facilitar o preparo do cozido servido pelas
donas de casa ao meio-dia.
Ali, eventualmente,
também se comemora a fartura e as boas vendas – ou afogam-se mágoas, inclusive
as de natureza amorosa – nos boxes que vendem bebida e comida. Naqueles boxes é
mais fácil degustar generosos pedaços de carne vermelha assados sobre as brasas
de fogareiros metálicos; bebe-se mais, também, cachaças temperadas com ervas
aromáticas; e a cerveja servida em copos plásticos escorre saborosa afastando a
sede e afogando a tristeza.
Galpão
de Utensílios
No Centro de Abastecimento
não está disponível, apenas, uma ampla variedade de alimentos. Os utensílios
domésticos, indispensáveis à vida do sertanejo, também estão lá, à venda num
galpão específico. Os tabaréus circulam em busca de produtos que atendam às
suas necessidades no campo, mas por ali também transita gente da cidade,
sobretudo vendedores ambulantes e trabalhadores que vivem de pequenos biscates,
fazendo compras para seu comércio.
A variedade é bem
ampla: pequenos fogareiros que servem para esquentar panelas de feijão,
churrasqueiras metálicas, espetos para carne e espetinhos de madeira para o tira-gosto,
fifós, candeeiros, estilingues, ratoeiras, e um arsenal de facas de porte
variado. O que chama a atenção nessas últimas são as bainhas de couro, com
acabamento fino. Algumas são verdadeiras obras de arte.
Os apetrechos dos
vaqueiros também não são difíceis de encontrar: gibões com desenhos característicos,
jalecos, perneiras e botas de couro cru, típicas dos vaqueiros nordestinos. As
espingardas – sobretudo aquelas destinadas à caça de pequenos animais –
desapareceram depois que a violência cresceu e que as campanhas de desarmamento
ganharam espaço.
Ali também há quem se
vire vendendo roupas e sapatos usados. Esses produtos são estendidos em lonas
plásticas nos corredores do galpão ou são colocados em cabides e pendurados em
exposição. Atestam a triste realidade da exclusão social.
Noutros tempos, também
era grande a oferta de móveis: camas, guarda-roupas, mesas com cadeiras,
tamboretes, colchões com forro de capim e grandes espelhos que faziam a alegria
das meninas da roça. Eram vendidos, sobretudo, na segunda-feira. Os móveis,
rústicos e com acabamento pouco sofisticado, cabiam no orçamento e ajustavam-se
às residências modestas da gente pobre da zona rural.
Não raramente, veículos
que faziam carreto permaneciam estacionados ali ao lado, à espera do fechamento
dos negócios. Era comum também ver os chamados “pau-de-arara” transportando
colchões recobertos com tecidos vistosos nos finais de tarde das
segundas-feiras, quando os tabaréus vinham para fazer o dia de feira mais
animado.
Galpão
Atacadista
Lá embaixo, no piso
inferior do Parque Manoel Matias, localiza-se um setor de comércio frenético,
mas com público específico: o segmento de comércio atacadista. Ali é intenso o
movimento de caminhões: desembarcam melancias redondas do Vale do São
Francisco, laranjas vindas da região de Alagoinhas e até de Sergipe, cebolas
brancas e roxas de Pernambuco, gigantescas espigas de milho do agronegócio do oeste
baiano e os abacaxis de Itaberaba.
Em frenéticas
transações, proprietários de bares e restaurantes, gerentes dos mercadinhos espalhados
pela cidade toda e gente que vende em carrinhos-de-mão pelo centro da cidade
compram produtos no atacado para revendê-los. É incessante o movimento de
utilitários que estacionam e, após algumas negociações, partem com as
carrocerias carregadas.
Os preços espantam os
consumidores das cidades maiores, como Salvador, e até mesmo aqueles feirenses pouco
habituados ao entreposto: são relativamente baixos, às vezes estimulando as
compras generosas. Apesar disto, a arte da pechincha é exercitada com
disciplina oriental. Qualquer abatimento pode representar economias para
compras adicionais.
À margem da prefeitura
– responsável pela administração do entreposto – foram, aos poucos, surgindo
barracas de madeira cobertas com lona, boxes de bloco e cimento e estruturas
paralelas que, apesar de assegurar comodidade a quem vende, trouxeram um ar
sombrio ao galpão. Ali proliferam também bares e restaurantes que atendem uma
clientela cativa. Placas e cartazes indicam o cardápio e listam os preços dos
pratos. Normalmente, os “pratos feitos” são os mais requisitados.
Naquele piso, é
impressionante a sensação de fartura. As pencas de bananas se sucedem,
intermináveis, ao longo de largos espaços, em gigantescas ondas esverdeadas;
laranjas amarelas amontoam-se, desafiando a gravidade; o espetáculo das
pirâmides formadas por melancias, melões e abacaxis também espanta. Até mesmo
as cordas de alho evocam a fartura onipresente no entreposto. O cheiro forte do
produto inebria os boxes, propaga-se para as cercanias, sobretudo nos dias
quentes, quando o vento não sopra.
O ritmo fervilhante
do Centro de Abastecimento dos dias de feira arrefeceu a partir da terrível
seca que assola o Nordeste e, principalmente, em função da feroz crise
econômica que se arrasta há dois anos. Há menos movimento, menos gente
circulando. Até os pios festivos dos pardais se tornaram melancólicos,
eventualmente rompendo longos silêncios.
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