A
abordagem aconteceu ali na avenida Getúlio Vargas, em frente a uma agência
bancária. Era manhã de um feriado qualquer. Ia distraído, até ser abordado por
uma jovem que sustentava uma braçada de revistas. Pretendia argumentar que
aqueles produtos não me interessavam, que estava apressado, mas acabei cedendo
à conversa. Estudante, queria repassar revistas antigas em troca de
contribuição para sua formatura. As oportunidades de leitura eram vastas: iam
da arquitetura à economia e finanças. Mas tudo publicação antiga, que
desestimulavam até a solidariedade.
Dedicava-se,
particularmente, à recomendação de uma conhecida revista cujo público
preferencial eram executivos e empreendedores. “O senhor é empresário?”,
indagou a jovem, com vivacidade. “Não. Sou funcionário público”, redargui,
satisfeito com o ar de ojeriza que ela esboçou. Aí o papo esfriou e segui meu
caminho. À distância, notei que me julgava parasita ou algo do gênero.
A
repugnância ao funcionalismo público vem se tornando frequente. Quem se guia
pelo noticiário está convicto que servidor público é indolente, preguiçoso,
ineficiente e embolsa fortunas; que o Estado é moroso, burocrático,
paquidérmico e dispensável. Por outro lado, vê o empresário como pobre vítima
do Estado fiscalista e da legislação draconiana; que os serviços prestados pela
iniciativa privada são, por definição, de excelência, embora as evidências
contrárias se avolumem todos os dias; e que suprimir o Estado, reduzi-lo às
dimensões mínimas, é o ideal de qualquer sociedade civilizada.
Há
quem acredite que, no Brasil, essa marcha está em curso desde que Michel Temer
(PMDB), o mandatário de Tietê, supostamente encarnou a luta pela construção
dessa sociedade idealizada. Exemplos dessa pretensa cruzada avultam no
noticiário há mais de um ano, mas, na última semana, veio à tona uma
contundente demonstração desse festejado esforço. Trata-se do Plano de Demissão
Voluntária (PDV) para servidores federais.
Anunciado
com pompa, o PDV pretende desligar da União cinco mil servidores. Com isso,
estimam os sábios do Planalto, será poupado R$ 1 bilhão por ano. Também foi
oferecida a opção pela redução da jornada de trabalho: de oito horas diárias
para seis ou quatro, com a respectiva redução dos salários. Supostamente, um
salutar esforço pela redução do custo da máquina pública, segundo prescreve,
incessantemente, a novidadeira imprensa oficiosa.
Só
que, nos bastidores, sorrateiramente, o PMDB vai embarcando apadrinhados dos
governistas na máquina pública. Milhares deles passaram a ter direito a um
polpudo contracheque desde que o mandatário de Tietê assumiu. Vão reforçar o
exército de parasitas que lotam solenidades, aplaudem, figuram nas fotografias
oficiais e que, nas horas vagas, defendem sua “mão de farinha”, com empenho
glutão, nas redes sociais.
Contradição?
Engano? Descuido? Nada disso. Trata-se, no fundo, de um projeto. E de um
projeto que vai sendo tocado com êxito: defenestram-se servidores públicos e os
serviços públicos para, malandramente, substituí-los, com cargos comissionados,
terceirizados, cooperados, Reda e outros artifícios do gênero. Quem vai
embarcando nesse sistema são os felizes amigos dos políticos e os próprios
políticos, muitas vezes; coronéis locais manobram e indicam apadrinhados; laranjas
intrépidos assumem a direção de organizações sociais e cooperativas para
operacionalizar esses esquemas.
A
manobra – uma revisita radical ao clientelismo de outrora – não tem o objetivo
de melhorar serviços públicos, aprimorar o atendimento à população, reduzir
gastos, nada disso: o único propósito é sustentar os donos do poder no poder
através de um sofisticado, complexo e abrangente sistema clientelista que,
modestamente, nos arriscamos a classificar como “neoclientelista”.
Seria
injustiça acusar o PMDB de, isoladamente, urdir essa trama toda de um ano pra
cá. É coisa antiga, que nunca foi complemente enterrada e que, na era petista,
ganhou fôlego, inclusive. Mas que, com o chega-pra-lá aplicado sobre os
petistas, perdeu o que restava de vergonha.
Reputo
como ingênua a moça que, na Getúlio Vargas, me olhou feio, enxergando-me como
uma espécie de larápio. Afinal, engana-se se imagina que, no poder, alguém
advoga esse liberalismo pueril que a imprensa cultiva incessantemente. No
fundo, o argumento do Estado mínimo serve para justificar o assalto que uma
meia-dúzia trama sobre o poder público, tomando o Estado para si.
Quem viver, lá no futuro,
verá.
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