Aqueles
que transitam com frequência pela BR 324, no trecho entre a Feira de Santana e
Salvador, costumam ter mapeada mentalmente toda a paisagem que se descortina ao
longo da viagem. Na saída da cidade se vê o núcleo do Centro Industrial do
Subaé (CIS) na BR 324. Ali se sucedem dezenas de empresas – algumas delas
multinacionais – com seu movimento de trabalhadores, com chaminés que expelem
fumaça, com carretas e caminhões que manobram desembarcando matéria-prima ou embarcando
produtos cujos destinos se espalham num leque amplo de municípios.
Quilômetros
adiante as fábricas vão rareando: surgem plantações de eucalipto, trechos com
pastos de capim viçoso e, nas imediações do viaduto da BR 101, multiplica-se o
comércio típico das margens das rodovias: churrascarias, postos de
combustíveis, estabelecimentos envidraçados que oferecem generosos cafés da
manhã, com imensas placas publicitárias chamativas.
Naquele
frenético trecho entre o Bessa e Amélia Rodrigues pontua a pequena agricultura.
Pelas janelas dos veículos é possível ver plantações de coentro, cebolinha e
couve, por onde se movimentam trabalhadores atarefados, sobretudo nos luminosos
começos de manhã. Aquela produção vai abastecer entrepostos comerciais de
Salvador e da Feira de Santana.
No
longo declive que sucede Amélia Rodrigues é possível se deparar com um
espetáculo ímpar: um trecho íngreme de Mata Atlântica foi poupado, oferecendo a
visão de árvores imponentes, de um verde vívido, que projetam sombras generosas
e úmidas. Aqui ou ali se espicha, imponente, um dendezeiro que balança,
elegante, ao sabor do vento, em meio à mata nativa. É rara essa demonstração de
natureza pujante na centena de quilômetros tragada pela devastação em nome da civilização.
Canaviais
Um
pouco mais adiante se observa um longo trecho da atividade econômica mais
emblemática da rodovia: os canaviais que justificaram a expansão da colonização
portuguesa em direção ao interior do continente. Embora sua importância
relativa tenha sido suplantada, há décadas, pela indústria petroquímica e
segmentos afins, e pelas já mencionadas empresas no núcleo do CIS, a
cana-de-açúcar segue como principal símbolo da BR 324.
Quem
passa atento pela estrada, porém, percebe que a paisagem pode mudar nos
próximos anos. As antes bem cuidadas plantações estão sendo abandonadas
discretamente, conforme nota quem examina com mais atenção. No lado esquerdo há
um trecho calcinado, com escassas plantas carbonizadas fincadas na terra
coberta de fuligem.
No
extremo oposto, num trecho amplo, onde antes se sucediam canaviais, viceja um
pasto verde, brilhante, sob a luz matutina do sol. Nele, um rebanho de gado
nelore mordiscava, com movimentos lentos, o capim abundante. São os primeiros
sinais de que, ali, haverá mudanças na atividade econômica e, por consequência,
na paisagem? Algumas pistas sinalizam nessa direção.
Ali
próximo, nas imediações de Santo Amaro, o afamado cultivo da cana-de-açúcar deu
lugar a extensas plantações de eucaliptos que vão se espichando e balançando ao
vento. Noutros trechos, também há pastagens onde antes havia apenas canaviais.
A expansão da indústria do papel – que emprega o eucalipto como matéria-prima –
e o declínio da indústria do açúcar parecem ter convergido, viabilizando a
mudança num curto espaço de tempo.
Nas
últimas décadas, na Bahia, o cultivo da cana-de-açúcar não teve relevância econômica
como nos estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas. Lá, os canaviais se sucedem
interminavelmente pela BR 101, sufocantes, brotando quase no acostamento da
rodovia, em maio à imensa monotonia característica da monocultura. Daí a
natureza da transição por aqui, discreta e pouco notada, sem maiores
solavancos.
Favelas e Baía de
Todos os Santos
Seguindo
viagem, a sequência de viadutos acinzentados, impregnados de fuligem, sinaliza
para o viajante que ele mergulhou nos limites da Região Metropolitana de
Salvador. Às margens, sucedem-se povoados e distritos – inúmeras habitações
precárias, de blocos vermelhos, muitas cobertas de telhas de amianto e alguns
prédios de blocos aparentes e encanamento visível – e indústrias que despejam
no ar densos rolos de fumaça. Há também pastagens ralas, algumas atravessadas
por dutos.
Mais
adiante, a sucessão de imóveis precários vai se aproximando, se adensando,
compactando-se em favelas. Trilhas íngremes, sem pavimentação, tortuosas, conectam
a rodovia àqueles precários núcleos de povoamento. Muitos moradores são os
retardatários do êxodo rural cujo último espasmo aconteceu ao longo da década
de 1990. Desafortunados, ficaram distantes dos espaços urbanos mais dinâmicos.
Aqui
ou ali, em pontos específicos, o viajante consegue enxergar nesgas da Baía de
Todos os Santos por trás de fileiras de eucaliptos. Nas manhãs luminosas, de
céu claro, o azul das águas do fundo da baía se destaca, muito vivo, em meio ao
cenário temperado pelo cinza e pelo verde da vegetação.
Adiante,
por fim, se envereda no frenesi periférico da capital. O habitualmente intenso
movimento da BR 324 soma-se à rotina da população que circula pelas vielas,
aguarda nos pontos de ônibus, mercadeja, compra, conversa despreocupada,
trabalha, vive.
É evidente que os ambientes
se transformam o tempo todo. Há mudanças, no entanto, que são mais profundas,
estruturais. No suceder de cenários da BR 324, os primeiros sinais dos
estertores da cultura canavieira são, sem dúvida, a mudança mais essencial em
curso.
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