Pular para o conteúdo principal

A rebeldia é o principal legado de Lucas da Feira

Sábado houve uma celebração pelos 210 anos de nascimento de Lucas da Feira, lá no Mercado de Arte Popular. Controversa personagem, até hoje provoca acalorados debates na Feira de Santana. Herói ou bandido? Essa costuma ser a dicotomia, que contrapõe aqueles que buscam resgatar a figura histórica com os seus implacáveis detratores. Note-se que Lucas se notabilizou como bandoleiro na primeira metade do século XIX. A ele, são atribuídos inúmeros crimes.
Apesar das intensas discussões, das posições encarniçadas, das defesas apaixonadas, é visível que os posicionamentos sobre Lucas da Feira figuram mais na dimensão mitológica que, propriamente, amparados em fatos históricos. Dessa forma, fica difícil compreendê-lo e interpretá-lo como personagem de uma época e de uma determinada realidade.
Diversas fontes indicam que a personagem nasceu em 18 de outubro de 1807 e foi enforcado em 25 de setembro de 1849. Outras tantas apontam como local de nascimento a fazenda Saco do Limão, aqui nas cercanias da Feira de Santana. A partir daí, boa parte das informações vêm pejadas de juízo de valor, ilações, reprimendas e alguma exaltação.
Atribui-se a Lucas da Feira um espírito rebelde e a exposição a intensos maus tratos na infância escrava. Essas razões o levaram a se tornar bandoleiro, constituir um grupo e promover roubos, saques, assassinatos, estupros e outras estripulias no então imenso território da Feira de Santana. Segundo estimativas, essa vida atribulada se arrastou por inacreditáveis duas décadas, até sua captura.

Feira-Livre

Rollie Poppino, o historiador norte-americano que andou pesquisando a Feira de Santana do século XIX, menciona Lucas da Feira de passagem. Atribui a ele uma onda de crimes e assaltos pelas estradas que afetou, até mesmo, o funcionamento regular da feira-livre à época. Versões do gênero tangenciam a delicada questão da escravidão – e a revolta contra essa condição – privilegiando a dimensão criminal e, sobretudo, patológica da personagem.
Imagina-se que, à época, o tratamento reservado aos escravos não devia ser, exatamente, cordial; e que a revolta contra essa condição era, no mínimo, compreensível. Questionar a escravidão pelas vias institucionais era impossível: àqueles espíritos inconformados restavam os quilombos, o cangaço, a vida bandoleira. Nessas circunstâncias, a fronteira com o crime é muito tênue.
É provável também que muitos crimes atribuídos a Lucas da Feira tenham sido cometidos por terceiros e surgiram ladinos que trataram de lhe atribuir responsabilidade. E aí a fama do escravo rebelde só cresceu. Mas esse raciocínio também já percorre a dimensão da especulação. É melhor, portanto, centrar a análise no contexto.

Legado de Lucas

O contexto mostra que a realidade é mais complexa que o antagonismo entre o “bandido” e o “herói”, comum nas fábulas e na crônica religiosa. É provável que Lucas da Feira tenha cometido várias atrocidades nos seus tempos de bandoleiro, inclusive prejudicando gente que não estava no circuito dos senhores de escravos; sua insubordinação, porém, foi contra uma sociedade escravista, extremamente cruel e tão violenta quanto hipócrita.
O evento no MAP relembrando seu nascimento tem o mérito de manter vivo – embora longe de almejar quaisquer conclusões – o debate sobre a personagem e sobre seu contexto. Lá houve declamação, cantiga e muita valorização da cultura nordestina. Muitos feirenses compareceram ao espaço para se divertir no sábado.
Pelas mesas, aqui ou ali, estalaram discussões sobre Lucas da Feira e seu papel. Evidentemente, tudo temperado pelas paixões que cercam o mito. O escravo insurreto foi morto há quase 170 anos. Sua atitude de se insurgir contra a ordem escravocrata, no entanto, segue viva e é o que mobiliza esses debates acalorados até os dias atuais.
A rebeldia que, lá adiante, se traduziu em incontáveis estripulias talvez seja o principal legado de Lucas da Feira.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Parlamento não digere a democracia virtual

A tentativa do Congresso Nacional de cercear a liberdade de opinião através da Internet é ao mesmo tempo preocupante e alvissareira. Preocupante por motivos óbvios: trata-se de mais uma ingerência – ou tentativa – da classe política de cercear a liberdade de opinião que a Constituição de 1988 prevê e que, até recentemente, era exercida apenas pelos poucos “privilegiados” que tinham acesso aos meios de comunicação convencionais, como jornais impressos, emissoras de rádio e televisão. Por outro lado, é alvissareira por dois motivos: primeiro porque o acesso e o uso da Internet como meio de comunicação no Brasil vem se difundindo, alcançando dezenas de milhões de brasileiros que integram o universo de “incluídos digitais”. Segundo, porque a expansão já causa imensa preocupação na Câmara e no Senado, onde se tenta forjar amarras inúteis no longo prazo. Semana passada a ingerência e a incompreensão do que representa o fenômeno da Internet eram visíveis através das imagens da TV Senado:

Cultura e História no Mercado de Arte Popular

                                Um dos espaços mais relevantes da história da Feira de Santana é o chamado Mercado de Arte Popular , o MAP. Às vésperas de completar 100 anos – foi inaugurado formalmente em 27 de março de 1915 – o entreposto foi se tornando uma necessidade ainda no século XIX, mas só começou a sair do papel de fato em 1906, quando a Câmara Municipal aprovou o empréstimo de 100 contos de réis que deveria custear sua construção.   Atualmente, o MAP passa por mais uma reforma que, conforme previsão da prefeitura, deverá ser concluída nos próximos meses.                 Antes mesmo da proclamação da República, em 1889, já se discutia na Feira de Santana a necessidade de construção de um entreposto comercial que pudesse abrigar a afamada feira-livre que mobilizava comerciantes e consumidores da região. Isso na época em que não existia a figura do chefe do Executivo, quando as questões administrativas eram resolvidas e encaminhadas pela Câmara Municipal.           

“Um dia de domingo” na tarde de sábado

  Foi num final de tarde de sábado. Aquela escuridão azulada, típica do entardecer, já se irradiava pelo céu de nuvens acinzentadas. No Cruzeiro, as primeiras sombras envolviam as árvores esguias, o casario acanhado, os pedestres vivazes, os automóveis que avançavam pelas cercanias. No bar antigo – era escuro, piso áspero, paredes descoradas, mesas e cadeiras plásticas – a clientela espalhava-se pelas mesas, litrinhos e litrões esvaziando-se com regularidade. Foi quando o aparelho de som lançou a canção inesperada: “ ... Eu preciso te falar, Te encontrar de qualquer jeito Pra sentar e conversar, Depois andar de encontro ao vento”. Na mesa da calçada, um sujeito de camiseta regata e bermuda de surfista suspendeu a ruidosa conversa, esticou as pernas, sacudiu os pés enfiados numa sandália de dedo. Os olhos percorriam as árvores, a torre da igreja do outro lado da praça, os táxis estacionados. No que pensava? Difícil descobrir. Mas contraiu o rosto numa careta breve, uma express