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O assassinato da vereadora e a incompetência do governo

Em junho de 1994 o Rio de Janeiro viveu um dos seus dias mais sangrentos até então: num intervalo de apenas 24 horas, 22 assassinatos foram contabilizados na Cidade Maravilhosa. Treze cadáveres resultaram de um único episódio: o assassinato do líder do tráfico no Complexo do Alemão, “Orlando Jogador” por um traficante rival, Ernaldo Pinto de Medeiros, o “Uê”. A emboscada – meticulosamente planejada – desestabilizou as relações de força do crime organizado e provocou uma escalada de violência que se estendeu pelos anos seguintes.
Após as eleições presidenciais, em novembro daquele ano, anunciou-se com pompa uma operação do Exército no Rio de Janeiro, visando erradicar o crime organizado. Tudo não passou de encenação pós-eleitoral: durante vários dias foram conduzidas gigantescas blitze contra a população pobre – e honesta – dos morros, com resultados pífios.
Apreenderam-se algumas poucas armas, quantidades desprezíveis de drogas e prenderam-se alguns acusados – no máximo, meros coadjuvantes no mundo do crime – apesar de todo o aparato mobilizado. Os traficantes, como sempre, sumiram, para reaparecer após a desocupação. Depois dessa, a primeira, vieram várias operações similares na sequência.
Alvejado por denúncias de corrupção e incapaz de tocar a nociva contrarreforma da Previdência, Michel Temer (MDB-SP), o mandatário de Tietê, resolveu apostar na intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro como estratégia de marketing para reverter o noticiário negativo. O instrumento é mais contundente – até um militar do Exército foi nomeado como interventor – mas os resultados, em um mês, são pífios, desproporcionais à pirotecnia a que se recorreu.

Assassinato

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, na noite de quarta-feira (14) mostrou o desassombro com que atua o crime organizado naquele estado. Apesar das bravatas, da grandiloquência e das promessas de paz vindoura, os criminosos não se intimidaram: executaram uma autoridade – quinta vereadora mais votada de uma das principais capitais do País – evidenciando a anarquia reinante nas ruas do Rio de Janeiro.
O assassinato de Marielle Franco carrega elevado conteúdo simbólico: era mulher, negra, nascida na periferia e militante dos direitos humanos. Gente com esse perfil sempre permaneceu à margem dos cargos políticos e, nos últimos tempos, vem se avolumando uma resistência raivosa, ressentida, iracunda – ainda que, muitas vezes, velada – contra a ascensão recente, mas ainda restrita, de lideranças políticas com esse perfil.
Quem matou Marielle Franco? Essa é a pergunta mais importante no momento. Os governantes reagiram com muita retórica, exalando autoridade, prometendo providências, reiterando que não se intimidarão. Mas, no fundo, parecem surpreendidos: a violência no Rio de Janeiro é muito mais complexa e séria que a discussão fanfarrona de uma estratégia de marketing, que uma barganha de balcão, que uma conspiração nos bastidores. Parece que chegou a hora do mandatário de Tietê e sua trupe entenderem que o problema exige mais que truques de propaganda.
Muita gente se mobilizou, Brasil afora, para repudiar a hedionda execução – mais uma no sangrento cotidiano do brasileiro – e exigir providências. Caso se descubra quem matou Marielle Franco, talvez se alcance – mais uma vez – o fio da meada que enlaça o Estado e que instituiu nele, há décadas, um poder paralelo de força inequívoca e de assustadora petulância.

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